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domingo, 11 de julho de 2010

Ao som do gramofone - última parte!

“Como ousam?” Foi o que disse o pobre, eu me lembro muito bem. E ele estava armado! “Não ouses fazer nada, Dilermando.” Disse Brígida Cécile, e os seus olhos outrora miúdos e ternos sob os efeitos do vinho, ficaram medrosos e lúcidos diante do homem que jurava acabar com nossas vidas. É, foi uma traição! Segredo maldito! Vi nos olhos do podre a barafunda de vários demônios e o brilho do choro de um orgulho ferido. O ciúme o fez morder os dentes como um animal feroz. O piano tocava Nocturne... Cécile tomou-me a frente e precipitou-se para evitar o que já estava premeditado. Aliás, tudo ali era o resultado de uma equação de fatores que se igualavam ao crime previsto. Tudo já estava concebido, predeterminado, era o resultado de nossas afeições pérfidas que tinham sido incólumes até ali. Tudo era previsível e nós estávamos inebriados pela volúpia. Traímos aquele homem... Aquele pobre homem cujos olhos queimavam como o opala dos olhos do lince na escuridão da noite. “Você não vai fazer isso, Dilermando! Não deves...” Eu disse, com um fardo nas costas e um punhal enfiado no âmago da consciência. Mas ele estava consumido pelo ódio e pelas feridas do orgulho... Apontou o Nagant em minha direção... Cécile tentou detê-lo, mas ele atirou mesmo assim... Foi como um ferro que me perfurou o pé um dia nas trelas da infância. Mas desta vez foi com o calor de dez mil infernos sob o meu trapézio tênue ao pescoço. O miserável atirou em mim! E o segundo tiro, quando Brígida correu para evitá-lo, para me defender, jurando que pelo amor ele não atiraria... Acertou-a no estômago. Foi tudo tão rápido como um relâmpago... A miopia de sua insensatez o fez vergar no arrependimento. O desespero o fizera cego e ele só enxergava pela lanterna do ódio o meu ocaso. Queria-me ver o líquido rubro escorrer até o fim. Cécile segurava o revolver com força agonizando no chão da porta e ele, de joelhos, tentava tomá-lo, mas não sabia o que fazer diante dela sangrando. Fui talvez covarde em bater num homem de joelhos. E o bati com a garrafa de vinho na cabeça e pelo mesmo desespero o empurrei das escadas. Oh, Cécile, pobre Cécile... Tomei dela a arma e fui conferir o homem que se levantara armado com um punhal. Ele tivera vindo preparado como a morte trás a sua foice. Por Deus, atirei naquele homem as últimas balas do revolver. Tudo como um raio da loucura fez daquela noite a mortalha que me cobriu o luto até hoje. E nada mais vejo além desse véu negro que me cobriu a vida. Voltei até Brígida e ela me olhava do chão com o último brilho de seus olhos. Misérrimo! Maldito eu sou! Não falou nada... Sua boca estava na cor púrpura da morte... O pulso não palpitava mais... Lembrei-me de Ana deitada no féretro... Aquele segredo maldito não era honesto. Não era digno da pureza que nos envolvia os lençóis. Por Deus o que eu fui fazer na França? Acabar com a vida de uma moça e de um rapaz, de uma família? Fiquei ali, deitado junto a Brígida sentindo seu último alento. Até que o tio Antoine chegou e me viu aos prantos. Ele também entrou em desespero e não tardou deduzir que eu era o assassino. Olhou-me com a brasa dos olhos enviesados de desentendimento. Eu o entendo! De certa forma eu causei aquele infortúnio todo. Aquela bancarrota maldita. “O que você fez seu assassino miserável?” disse o meu amigo do barco. “Você não entende, Dilermando entrou aqui com o Nagant apontado pra mim...” Eu disse como um menino arrependido que matou o pássaro numa brincadeira. O meu ombro sangrava varado pela bala. Os vizinhos deveriam ter ouvido os disparos e já deveriam ter chamado a polícia ou, contudo, não quiseram se meter. Ele correu para o outro quarto onde suponho ter ido buscar a espingarda e eu corri levando comigo as angustias daquela noite. Desci as escadas e peguei a chave do barco na porta da cozinha, fui para o cais... Corri para longe e para tentar explicar depois tudo aquilo. Corri para o porto onde estava o barco... De lá eu não o vi mais. Fugi para a Espanha naquela madrugada, cheguei ao meio dia na manhã seguinte. O ferimento estancou na viagem. Deixei o barco no porto de Málaga e esfriei a cabeça sob a brisa das andaluzas. Por sorte um navio iria para o Brasil no dia seguinte. Lá deixei aquele barco e com um pouco de dinheiro paguei a passagem de volta. O navio fazia escala em Recife e eu estive de volta à Rua da Matriz no dia vinte e nove de outubro de 1926. Irei poupá-los dos detalhes da viagem. Aqui estive encarcerado, preso às minhas agruras até hoje por toda aquela desventura. Definitivamente eu não tive mais ânimo pra nada. Carreguei em mim a maldição de um crime. Eu deveria ter morrido no lugar de Ana e de Brígida. Eu deveria ter me matado desde aquele enterro. Eu arruinei uma família, a vida de uma pobre moça. Deus não dever ter mais planos para mim... E a minha esposa deve estar me esperando em algum lugar... Escrevo aqui esta história maldita para que, se algum dia, alguém a possa ler: faça-a chegar às mãos de Antoine, e que ele me entenda. No altar da igreja da Matriz eu pedi a Deus que me perdoasse. Na volta do mercado caía um chuvisco e acabou molhando a corda, ficou encharcada e talvez o laço não funcionasse bem. Mas eu prefiro usá-la mesmo assim...

Aqui, em memória de Ana, Brígida, Dilermando e Antoine; deixo esta história! E ao som do gramofone ouço Chopin pela última vez.

Recife, 1º de janeiro de 1927.

João Alves Pereira.

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