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sábado, 3 de julho de 2010

Ao som do gramofone - 2ª parte...

Marseille, nove de outubro de 1926. Brígida vinha mantendo um segredo para o namorado e o tio. Eu também! Porém com grandes ressentimentos, e que isso não me livrava da culpa de adultério. Os segredos são coisas naturais que suponho todas as pessoas devem ter. Mas o nosso não era um segredo honesto, e, pois, tratava-se de um segredo que ia de encontro com as propostas anteriormente acertadas com o namorado. Um namoro pré-supõe uma fidelidade conjugal e ela não vinha seguindo essa proposta que está subentendida em um romance. O fato era que Dilermando também não lhe era fiel e seguia uma vida promíscua pelos cafés meretrícios da cidade. Ademais era um romance por conveniências futuras de um casamento que serviria de sustentáculo para a vida de uma moça que já era órfão. Contudo, ela não parecia feliz. Dilermando era um homem forte, alto e já acumulava uma pequena fortuna familiar. Era também um rapaz bonito diante dos olhos femininos; muito bem quisto e se dizia apaixonado. Brígida o conhecia desde criança. Foi inevitável aquele romance! Até mesmo as núpcias antes do casamento. E Marseille é uma cidade concupiscente, sendo também muito natural que um casal de namorados que se pretendiam casar, transarem antes do casamento. Seria frustrante esperar todas as cerimônias matrimoniais para algo que se pretende fazer há todo momento. E talvez seja este o maior sentido de nossas vaidades: o sexo! Tudo o que fazemos tem um fim nele, ou pretende-se! Brígida me contou que sua primeira vez foi no barco do tio quando tinha dezesseis anos. Confessou também que Dilermando forçou até que tudo acontecesse. E isso é revoltante! Fiquei imaginando como deveria ter sido aquela cópula forçada quando fui pescar com o barco. O tio soube e tiveram que continuar o namoro e se preparar para o casamento, para limpar a desonra. Um estupro do próprio namorado. Cécile tinha os olhos libidinosos... vestia-se com roupas provocantes, era uma deusa... Continuamos com o nosso segredo e sempre após fechar o café deitávamos juntos, exceto nos finais de semana quando Dilermando voltava de suas viagens e vinha dormir no quarto dela. O tio já tinha aceitado a idéia. Nos sábados à noite, após fechar o café, eu pegava o gramofone emprestado a Antoine e o levava para o sótão, ouvia o saudoso Chopin, e olhava as luzes da cidade de Marseille. Uma cidade linda! De muitas cores e pessoas elegantes... até os mendigos eram elegantes! O idioma reverberava nos ouvidos como poesia... até mesmo os palavrões dos insatisfeitos nas feiras. Eu adorava dizer “le vent m'a amené ici” (o vento me trouxe até aqui)... ou como dizia Cécile: “La vie sans musique serait une erreur” (a vida sem música seria um erro), uma frase de um filósofo alemão. Ela tinha uma rabeca... eu adorava ouvi-la tocar as modinhas francesas e as sinfonias clássicas. O sótão era um quarto apertado, mas além da cama e algumas caixas velhas, a janela e as paredes de tijolos ingleses e a abóbada de madeira, havia uns quadros em estado de mofo no escanteio que me eram interessantes. Não eram lá as meninas no piano de Renoir, mas eram pinturas que de alguma forma me incentivavam a pintar também. Aliás, a França cheira a arte por todas as esquinas: são pintores, poetas, músicos, cantores, atores, escultores e artistas de circo espalhados por toda a cidade. Tudo era um incentivo para produzir arte, uma inspiração para fazer algo fora da esfera trivial da vida. Lembrava-me de Ana e de suas poesias. Ela também arriscava umas pinceladas a óleo. Umas imagens distorcidas, embaçadas, tristes... A ociosidade do domingo e o cheiro de arte que me inebriava o vento me fez comprar umas telas brancas, pincéis e tintas. Não sabia como começar, mas o ofício de pintar era no mínimo lúdico. Por gentileza, Antoine dizia que eram belas imagens. E eu encontrei ali, naquele exercício de pintar o maior subterfúgio para o frio de minhas unhas e o pigarro de meu choro engolido da morte de Ana. Chorava escondido no sótão... sonhava em ter filhos e viver por toda a eternidade. Que ingenuidade a minha. Deus é que é o dono dos planos... não entendia os planos de deus que me disse o padre. A vida tem aquele gosto amargo do dia que o médico me disse que Ana iria morrer. E agora posso entender porque as pinturas dela eram embaçadas... eram as lágrimas que davam um desfoque e a imagem do quadro fica distorcida. Ela sabia que iria morrer desde antes. Resolvi pintar, pintar e pintar sempre que eu pudesse com o mesmo desfoco que as lágrimas davam às minhas lembranças. Figuras pessimistas era o mote de minhas telas, a morte em especial. Naquele mesmo domingo fui ao Théâtre National de Marseille (Teatro nacional de Marseille), ali mesmo na avenida: Quai de Rive Nueve, próximo de casa. Era uma comédia de Moliere. Foi um convite que uma atriz tinha dado a Antoine, mas ele iria para outro lugar... fui porque ele me deu o convite. Mas percebi que naquele dia não estava com clima para comédias e voltei pra casa, beirando a calçada... uma voz alta na entra, uma discussão e era Dilermando dizendo que iria bater na moça porque disseram a ele que ela tinha andado de conversinhas com um cliente do café. Quando me viu entrar ousou dizer que não me metesse. Dilermando usava armas como um homem que deve ou quer dever a vida. Cécile disse-me com os olhos que eu subisse. Fiquei esperando-o ir embora com as artérias pulsando na fronte. Ele se foi. Brígida achava que deveria terminar aquele namoro, mas o tio não queria sua desonra. Desonra? Esses conceitos éticos atrofiam e carcomem a liberdade. Eu subi para o sótão e me pus a ouvir o gramofone... Chopin outra vez com a sinfonia Nocturne. Não tardou que Brígida subisse também... eu não sabia se deveria continuar com aqueles desvarios... segredos malditos. Antoine não dormiria naquela noite em casa. Ela estava com um vestido de flores vermelhas e laços no decote. E desta vez trouxe-me um vinho tinto do porto... soltou os laços e deitou na cama. Lembro do gosto do vinho ainda nos lábios dela; o cheiro da nuca e dos cabelos, os seios que me pus a beijar... não quero que sejam confissões eróticas, mas ela tinha algo que me desencaminhava, induzia. Ainda mais é um desejo natural que faz um homem e uma mulher se deitarem, mesmo sendo algo fora das liturgias religiosas. A noite não parecia acabar e estávamos cada vez mais ébrios. Até que Dilermando abre a porta abruptamente e nos vê sob os lençóis...

Continua...

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