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segunda-feira, 28 de junho de 2010

Ao som do gramofone...

Recife, quatro de Julho de 1926. O gramofone tocava a última peça do disco de Chopin. Chopin é sempre fantástico como os momentos mais nostálgicos que temos. Ouço-o agora! E era um fim de tarde chuvoso como nos dias mais triste da vida. A chuva, de alguma forma parece ter alguma ligação mística com a morte... Preferi ouvir a música até o fim a tirar o luto ainda com os vermes taciturnos do campo-santo. Fiquei ali junto aos sapatos, olhando da janela como quem olha o oceano sem fim. Poucas pessoas passavam com seus guarda-chuvas para irem à Igreja da Matriz. A Boa Vista já era vazia nos domingos sem o comércio, e a chuva contribuía para que ela fosse ainda mais sozinha naquela quinta hora e meia da tarde. A missa começava às seis. Mas para mim não importava mais a missa nem as horas, quiçá o tempo não me fosse tão emérito quanto antes. Chorei ao vê-la no féretro... ainda estava linda como na mocidade! Cabelos vermelhos e um vestido lindo... O médico falou-me que o tumor cresceu rápido e não havia mais jeito. Ocupou todo o intestino e ela foi emagrecendo aos poucos. Era uma mulher de corpo magro e definido, mas ficou ainda mais magra de repente. Ela sentia de alguma forma que iria morrer... dizia que se encontrasse a morte pediria a ela que não a levasse antes que ela conhecesse o amor! Vinte e um anos... apenas seis meses de casados e não tardou aquele câncer maldito. Sonhava em conhecer a França... falava que era um lugar lindo para morar e viver um belo romance; tomar café, pintar quadros, transar e escrever poesias... A França é realmente linda para tudo isso. Mas não pude levá-la na nossa lua de mel. Eu trabalhava no porto do Recife: enchendo os navios de açúcar, e em casa concertava alguns sapatos e ainda fabricava moveis com um amigo. Mais não era o bastante para bancar a nossa viagem. Naquela tarde, após fechar a porta do ataúde e despedir-me dos familiares e amigos, voltei pra casa, sozinho: andando do cemitério de Santo Amaro até a rua da matriz, nº 89, só olhando o chão molhado da chuva... passei sete dias ouvindo Chopin e comendo apenas pão e bebendo vinho. Não que eu estivesse cometendo a antropofagia do corpo de cristo com algum vulto de ira aos céus... No sétimo dia fui à missa, afinal a igreja era na esquina da rua de casa e eu não quis ficar ali, junto ao mau-cheiro dos sapados furados e sem sola. Na missa eu senti vontade de vomitar, talvez pelo excesso do vinho, ou talvez fosse enjôo de uma sensação vilipendiosa para com os planos de deus com a minha mulher. Planos, disse o padre. Planos... depois voltei pra casa e fiquei mais uma semana... alguns amigos me visitavam e diziam votos de pêsames. Fiquei um longo tempo na clausura de meus dias melancólicos, lendo os livros de Ana e ouvindo o saudoso Chopin. Passei a ir à missa todos os domingos. No último do mês de Julho, após a última reza, fui andar pela cidade: mendigos encontravam-se ha cada esquina e na Rua Nova tinha o cinema Royal. As moedas de meus bolsos não davam para pagar o ingresso. Um amigo convidou-me para um daqueles cafés meretrícios, no intuito que eu esquecesse o meu infortúnio. Eu só quis andar pela cidade... caminhei pelas pontes, avenidas, praças e ruas... fui até o marco da cidade tomar a brisa do mar... ali fiquei por horas e a madrugada chegava com suas nuvens escuras... mas não chovia, era como um choro engolido do céu. Fiquei fitando os arrecifes de arenito e calcário no mar... pela alvorada um navio cheio de açúcar daqueles armazéns preparava bordo. Um amigo com quem trabalhava no porto estava conversando com o comandante e levava algumas malas consigo. Ele me avistou de longe e não tardou chamar-me para saber de meus sentimentos. Fui ter com ele o que queria. Eu estava vagando sem rumo, sem querer voltar pra casa. Do porto fazia um bom tempo que não trabalhava. O meu chefe preferiu que eu ficasse em casa descansando um pouco mais. Uma licença para o luto! Thomas me deu um abraço e disse que Ana estava nos céus com deus! E eu disse que ela ainda estava em mim... nas minhas roupas o seu cheiro; nas cartas que me escrevia poemas; no meu coração e a todo momento em meus pensamentos... estava comigo, em mim! Ele falou que eu deveria fazer alguma coisa para sair daquela situação: viajar talvez fosse interessante. Eu queria era vagar pelo mar sem fim e afogar-me no meio do oceano... Não tinha mais planos, ânimo algum para começar de novo. Aliás, nada mais me era interessante, a não ser Chopin que tinha sido o meu companheiro de aflições. O comandante ao ver a bancarrota que tinha se tornado a minha vida, disse-me que Thomas tinha razão e sugeriu-me viajar também com eles para a Europa, lá havia trabalho em vários portos. Ele tinha conhecimento e poderia arrumar emprego para dois jovens trabalhadores. Uma nova vida em outros ares. Eu nem me imaginava fora do Recife. Disse que não quis sem demora e que deveria voltar pra casa e cuidar das coisas, do trabalho, continuar mesmo assim. Despedir-me deles e voltei na direção de casa. O sol que estava escondido naqueles dias de inverno retirou as cortinas das nuvens e aqueceu o meu rosto barbudo. Lembrei-me de quando era um mancebo imberbe e sonhava em conhecer o mundo. Nos tempos que conheci Ana no ginásio pernambucano... fui voltando e na praça do diário comprei um jornal e sentei-me na praça do palácio do campo das princesas para ler as notícias da burguesia; os vexames nos café-bordéis da cidade: vendas de cocaína, morfina, éter, ópio e outros tóxicos. Mas numa outra página havia as novidades sobre a França: uma copa de futebol que não me interessava em nada. Mas uma exposição do impressionista Pierre-Auguste Renoir chamou-me a atenção. Renoir era o pintor favorito de Ana e meu também. Uma fagulha de sonho acendeu-me as chispas da porta de minha imaginação. Era a França que Ana tanto queria conhecer e que eu sonhava na aurora de minha mocidade... talvez a França fosse o diagnóstico de meu esmorecimento... Thomas e o comandante Jaime iriam para a Europa e possivelmente passariam pela França. Entusiasticamente eu senti o vento cochichar em meus ouvidos. Voltei ao cais e por sorte ainda estavam lá como que me esperassem para alçar âncora. Era sete e quinze da manhã, o navio sairia às oito! Eu disse que mudara de idéia e iria com eles. Thomas foi comigo até em casa, na boa vista, para arrumar as coisas depressa. Talvez a Europa fosse um ótimo lugar! Senti no sol e no vento bons ares para esta viagem. Pus o que coube na mala de couro marrom, tranquei a porta e nem me despedi dos vizinhos. Pegamos carona no bonde que passava pelo cais e chegamos ha tempo! O navio zarpou ruma à Europa... a viagem foi tranqüila, ajudei a limpar o convés e as demais obrigações de marinheiro. As noites no oceano são lindas: as estrelas parecem maiores e mais nítidas; Jogávamos cartas e xadrez durante a viagem. No vigésimo primeiro dia ancoramos em Marseille na França. O Comandante Jaime apresentou-me a um amigo no cais do porto. Eu não sabia falar Frances, mas ele sabia português e já havia visitado o Brasil antes. Antoine Byron morava perto do cais, na Rue Fortia, nº 7, na esquina com a Rue Saint-Saens e tinha um pequeno barco de pesca. Disse-me que havia emprego no barco e no café que tinha no térreo de sua casa. Ofereceu-me um lugar no sótão por enquanto que eu me organizasse. Ele sentia saudades do Recife e de uma jovem que conheceu na juventude. Quase se casou com ela! Morou na casa dos pais da moça, mas teve que voltar para a frança com a morte do irmão. O pobre deixou-lhes uma sobrinha, Brígida Cécile Byron. Antoine cuidava de tudo com a ajuda dela, uma moça de seus dezenove anos. Tinha também os cabelos vermelhos e era magra. Uma magra de corpo que se definia na silhueta do vestido; olhos verdes... Brígida tinha um namorado, Dilermando Chermont, trabalhava com os navios maiores. Fazia muitas viagens pelo mundo. Fiquei ajudando Antoine no barco de pesca e cuidando do café à noite. Thomas seguiu viagem com o comandante Jaime para a Grécia e depois Itália. Escolhi a França por sonhos antigos. Empenhei-me no trabalho para esquecer as angústias deixadas no Recife. Mas Ana estava comigo no coração. No último dia da exposição de Pierre-Auguste Renoir, Antoine convidou-me para ir com ele e depois tomar alguns vinhos. Eu havia contado a ele que era um dos motivos de minha ida à França. Tornamo-nos amigos e trabalhamos juntos por um bom tempo. Ele contava suas aventuras no Recife... as prostitutas e os teatros eram recordações da noite. O romance que teve com a atriz que jamais esquecerá... era um homem de bom coração! A cidade de Marseille era linda e cheirava a vinho branco naqueles tempos... recordações sinestésicas! Conheci algumas jovens, mas sempre aventuras efêmeras. Nunca esqueci Ana! Mas uma noite, após fechar o café, subi para o sótão com algumas nozes e Brígida subiu em seguida levando-me um suco. Um vestido curto e solto para uma bela noite de sono e para incitar a volúpia também. Era tão linda que me perturbava a sua presença naquele quarto apertado. O tio Antoine dormia como um morto cansado da guerra. Brígida sentou-se na janela e perguntou-me uma série de coisas... sobre minha mulher, a vida na antiga cidade, os meus planos... os seus olhos de jade e a silhueta das ancas, o seio e os lábios eram convidativos, mas nem sei se eu deveria decepcionar o meu amigo... Ela deitou-se na cama e se cobriu com o lençol, chamando-me para sair do frio... Assim, suponho, começou a história de minha prisão...

Continua...

O Recife das multicores

Do alto da cidade,
As nuvens da ogiva do céu
Parecem cavernas de ametistas...
E o topázio da lua cheia
Que fura a noite opala
É como o caleidoscópio da imaginação...
E a luz âmbar dos postes
Das ruas, avenidas e pontes:
Iluminam as multifaces do povo
E levam-nos na arteira dos rios pulsantes
Até a última ponta do cais,
Para um encontro com as ondas do mar...
E depois do arenito dos arrecifes,
O Recife das multicores
É a cidadela dos oceanos
E o brilho do próprio nácar...

quinta-feira, 24 de junho de 2010


Além dessa névoa escura da noite,
No recôncavo de arenito perto do mar,
E longe dos olhos negros do alquimista
E das mandíbulas de dentes travados,
Rangidos do ódio mefistofélico...
Ponho-me a olhar de cima
Vendo a luz do faroleiro
E a brisa no rosto molhado,
Suado do longo caminho...
Então pulei para fora do corpo
Despido na encosta das ondas...
Olhando o abismo do horizonte sem fim
De onde saiu deus com a boca aberta
Expulsando os demônios da noite
E começando uma nova aurora...

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